quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO NA CLASSE HOSPITALAR: UMA EXPÊRIENCIA COM OS PROCESSOS DE ENSINAR E APRENDER

FELLER, Elinara Leslei – UFSM
VARGAS, Jamily Charão – UFSM

Resumo

Este trabalho é resultado da experiência voluntária realizada na Classe Hospitalar do Serviço de Hemato-Oncologia do Hospital Universitário de Santa Maria/RS (HUSM), a partir de práticas de alfabetização, com crianças em fase inicial de escolarização, que se encontravam em tratamento no hospital. Essa atividade voluntária teve início em 2002, e entre esse tempo de ensino-aprendizagem com algumas crianças, práticas diferenciadas de leitura e escrita foram envolvendo os encontros. Nessa convivência com os alunos-pacientes, muitas questões foram motivos de impulsionar cada vez mais a vontade de ensiná-los. Perceber num primeiro momento o potencial de cada um deles escondido muitas vezes atrás do desânimo, por não conseguir acompanhar a turma na escola, pelas faltas que o tratamento exige; ou, pela fragilidade que encontra sua auto-estima decorrente das limitações que a doença ocasiona; bem como, o distanciamento do convívio familiar e da sua comunidade. Tudo isso, muitas vezes, acarretava a desmotivação pelo aprender, assim como também, o abandono da escola. Contudo, a cada encontro com as crianças buscava-se atingir o objetivo de ensinar e motivar o gosto de aprender, a partir de atividades que buscassem contribuir com o resgate da autoestima, com a afetividade, com a superação das dificuldades neste tempo de tratamento, bem como o retorno para o ambiente escolar. Neste ano de 2008 será compartilhada essa experiência a partir da publicação de um livro, relatando essas práticas de alfabetização na Classe Hospitalar, apoiado num referencial teórico sobre a temática, que poderá vir a contribuir com demais docentes que tenham o interesse em realizar trabalhos como este.
Palavras-chave: Alfabetização; Práticas Educativas; Classe Hospitalar.

Introdução

O processo de ensino-aprendizagem não exige um espaço/tempo definido, ele pode acontecer em qualquer ambiente em que haja desejo de aprender. Nessa experiência que aqui é apresentada, o conhecimento foi sendo construído a partir do envolvimento com o trabalho realizado voluntariamente com crianças em fase inicial de aprendizagem, que se encontravam em tratamento na Hemato-Oncologia do Hospital Universitário de Santa Maria/RS. O trabalho de alfabetização na Classe Hospitalar buscava, além de ensinar e/ou aprimorar a aprendizagem da leitura e da escrita, resgatar o desejo, a vontade, o gosto pelo conhecimento, e a motivação pela busca do saber. Além de estimular a criatividade, a autonomia, e a superação das dificuldades encontradas nesse período de tratamento.  
Nos primeiros encontros já era possível perceber as dificuldades que o aluno-paciente encontrava nesse período de tratamento, o que para alguns, o envolvimento com o aprender tornava-se mais dificultoso, mesmo sendo uma atividade diferente dentro do espaço/tempo hospitalar. Conforme Ortiz; Freitas (2005, p.27), “O evento hospitalização traz consigo a percepção da fragilidade, o desconforto da dor e a insegurança da possível finitude. É um processo de desestruturação do ser humano que se vê em estado de permanente ameaça”.
Alguns encontros o envolvimento com as atividades de leitura e escrita era maior, enquanto que outros ficavam reduzidos pela ocasião (momento da consulta, momento da quimioterapia), além dos momentos de desconforto causado pelo tratamento.
As atividades desenvolvidas se davam com crianças que já haviam ingressado na escola, assim como também àquelas que já se encontravam com idade para ingressar na mesma, mas que pelos anos de tratamento, não conseguiram iniciar o processo de escolarização. Nessa etapa da vida, a criança em tratamento passa por situações que interferem/dificultam sua formação. Nesse sentido Ortiz; Freitas (2005) apresentam em seus estudos algumas características das crianças em tratamentos nos hospitais que se encontram nessa fase.
Para o educando do ensino fundamental, a atmosfera hospitalar aprisiona o seu físico e sua mente, não permitindo o seu livre movimento e seu ingresso escolar; sufoca-o no ócio, cria laços de dependência, invade sua privacidade e perde o direito decisório de pertencimento de seu corpo e suas vontades. (ORTIZ; FREITAS, 2005, P.33)
 
Nesse sentido, as autoras destacam a importância de conduzir atentamente o processo de internação hospitalar, pois se o mesmo não for bem trabalhado com o paciente este poderá acarretar problemas físico-emocionais dificultando o tratamento e sua recuperação.
 Além dos fatores que atingem fisicamente a criança, outros fatores como o distanciamento de sua casa, de seus amigos e o contato reduzido com as pessoas de sua família contribuem com o sentimento de abandono, de angústias, e frustrações. Além disso, a família também passa por movimentos de transição das atividades sociais para a rotina 10327 hospitalar. Ortiz; Freitas (2005, p.36) contribuem ainda que “O adoecer configura-se em um fator provocador de desajustes na criança e na sua família, precipita um reconhecimento da limitação e ataques a seu corpo, ameaçando os aspectos vitais e remontando suas experiências a partir de um novo contexto situacional”. O novo ambiente em que passa a fazer parte de suas vidas, em muitos casos, duram por longos anos, sendo este um novo espaço de convivência com outros pacientes, e comunidade hospitalar. Esse espaço rotineiro constitui também um espaço de ansiedade de saber quando isso irá acabar. 
Além das consequências causadas pela doença, outro fator que contribui para o abando da escola, ou o distanciamento do aprender foram visíveis a partir dessa experiência, quando as crianças relatavam que não gostavam de retornar a escola, devido às faltas decorrentes da rotina hospital, e, até mesmo, mudança de cidade, acabavam não acompanhando a turma, dificultando o aprendizado. A partir desses relatos foi possível perceber que se sentiam excluídos. Essa circunstância ultrapassava os esforços da professora regente, sendo uma realidade presente na vida de muitas crianças internadas. 
 A partir dessas questões que o objetivo deste trabalho de alfabetização no ambiente hospitalar foi tornando-se cada vez mais relevante. Resgatar o interesse pelo aprender e pelo ingresso e reingresso no ambiente escolar, bem como nas atividades sociais veio a ser um fator que impulsionou este trabalho, que foi realizado em diferentes momentos e com diversas crianças em tratamento no HUSM. Além disso, as contribuições de Ceccim (1999, p.44) também revelam a importância do ensino-aprendizagem no ambiente hospitalar. “Parece-me que, para a criança hospitalizada, o estudar emerge como um bem da criança sadia e um bem que ela pode resgatar para si mesma como um vetor de saúde no engendramento da vida, mesmo em face do adoecimento e da hospitalização”. O estudar passa a contribuir para vencer muitas angústias e encarar a doença como uma etapa a ser superada e não como uma barreira que impede de viver, ter anseios, depositando esperança e retorno ao grupo que anteriormente pertencia ou que futuramente irá fazer parte.
 As práticas de construção da leitura e escrita no ambiente hospitalar foram ao encontro das experiências na formação da docência e na reorientação e atenção nas atividades desenvolvidas com as crianças, bem como, na responsabilidade de fazer parte de um relacionamento em que são depositados confiança e expectativas.
Esta possibilidade do educador de pertencimento a dois mundos – o escolar e o hospitalar – opera na vertente psicossocial de não-isolacionismo da criança na condição de doente, sem, contudo, desconhecer a sua real condição de doente. É um cuidado que permite uma ruptura no reducionismo do pensar a enfermidade. O professor, sensível ao estado conflituoso do paciente, reveste sua ação de educar num ato de companheirismo, de disponibilidade para estabelecer parcerias e cumplicidades. (ORTIZ; FREITAS, 2003, P.11)
 
Nos momentos de interação entre aluno-paciente e professor que são construídos laços afetivos e de comprometimento, na busca de atribuir o sentido de aprender, encontrando estratégias para a superação das dificuldades, que contribuem para o desânimo de continuar aprendendo. Além disso, é relevante desmistificar que o ambiente de aprendizado é apenas a escola. O hospital também pode ser um lugar onde muitos conhecimentos podem ser produzidos, inclusive conhecer e envolver-se no mundo da leitura e da escrita. Nesse sentido, traz-se aqui nessa escrita um recorte histórico sobre a Alfabetização e Letramento, com o intuído de aproximar as principais discussões referentes a essas temáticas, levando em conta que os processos de ensinar/aprender estão associados com o entrelaçar da teoria e prática. Bem como a importância da ludicidade e da afetividade no ambiente hospitalar.
Uma aproximação dos processos de Alfabetização e Letramento.
Ao longo dos anos os estudos referentes à alfabetização, e mais especificamente, ao sucesso e fracasso deste processo significativo na vida e no desenvolvimento social das crianças, se deteve nos métodos utilizados pelos docentes nas suas práticas educativas. Frente a isso, são muitas as teorias existentes, as quais sustentam premissas que demonstram o método mais eficaz ou a melhor metodologia utilizada para aplicação de determinadas técnicas ou estratégias que buscam o aprendizado da leitura e da escrita. Como afirma Ferreiro (1985, p.18) “o problema da aprendizagem da leitura e da escrita tem sido exposto como uma questão de método”.
 Assim, percebemos que o questionamento tradicionalmente evidenciado nos estudos é o de como devemos ensinar nossas crianças e adultos ainda analfabetos, ou seja, qual o melhor maneira para que possamos, como educadores, alcançar o sucesso no ensino-aprendizagem da língua escrita. Para tanto, ao falarmos da alfabetização, colocamos no centro de nossa atenção, as metodologias, ou os próprios professores, que têm em suas mãos a possibilidade de fazer com que a criança se aproprie do conhecimento da leitura e da escrita.
Ao longo da história ficaram registrados dois grandes grupos em que se classificam os métodos de alfabetização, segundo Rizzo (1977), em “Métodos Sintéticos” e “Métodos Analíticos”. O primeiro grupo utiliza-se da idéia de apropriação da leitura e da escrita a partir de um movimento que parte dos elementos menores para o todo, e tem como base do aprendizado a combinação de elementos isolados (sons, letras, sílabas etc.); já o segundo grupo destaca as unidades maiores (palavras, frases, textos, histórias etc.) para chegar à apropriação dos elementos menores, tendo como base a análise e compreensão da leitura desde cedo.
Destes grupos de métodos existentes, Rizzo (1977) destaca entre os métodos sintéticos: o “Método Alfabético”, o “Método Fônico” e o “Método Silábico”; e entre os métodos analíticos: a “Palavração”, a Setenciação”  e o Método Historiado”, assim como também o “Método Natural” considerado além de global, estruturalista. Tais métodos fizeram parte por vários anos na história da alfabetização no Brasil.
No entanto, na década de 80 discutir a eficácia entre tais métodos deixou de ser o centro das discussões sobre alfabetização, voltou-se outro olhar sobre o processo de aquisição da leitura e da escrita. A partir das ideias de Ferreiro e Teberosky (1985) sobre a Psicogênese da Lecto-Escrita, um novo discurso começou a surgir no conceito de alfabetização. Através desta abordagem “Construtivista” passou-se então a serem valorizadas as hipóteses de aprendizagem construídas pela criança na aquisição da leitura e da escrita.  
Essa perspectiva de ensino-aprendizagem destaca-se pela maior aproximação da realidade cultural, social e cotidiana do discente. A abordagem construtivista tem como centro da aprendizagem a construção de conhecimentos pelo próprio indivíduo que está aprendendo, ou seja, os alunos são vistos como produtores de seus saberes e conhecimentos, o que os coloca em uma posição de mais importância e responsabilidade.
Desse modo, as mudanças fundamentais ocorridas no processo de alfabetização provêm, principalmente, da desmistificação da premissa de que a utilização do método mais eficaz resolve os problemas referentes ao ensino-aprendizagem da leitura e escrita, bem como da desmistificação da ideia que a alfabetização é um processo unicamente formal, que ocorre apenas dentro da sala de aula, da escola, e inicia-se quando o professor acredita que o aluno está apto. 
Ao longo da primeira infância a criança vai percebendo a existência e a importância da leitura e da escrita, bem como construindo suas hipóteses de aprendizagem. Assim, quando ela realiza o contato formal com a lecto-escritura, não podemos ignorar todas as suas vivências até então, mas utilizá-las como um valioso suporte para a alfabetização, pois é um processo que vem acontecendo continuamente, através do contato em ambientes letrados. Como salienta Macedo (1994, p. 17) “para o construtivista a criança já sabe escrever desde o primeiro dia de aula, ainda que esse seu saber venha a conhecer muitos aperfeiçoamentos...”.
Contudo, a alfabetização ao longo dos tempos passou por diversas transformações com o intuito de contemplar um eficaz ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, para tanto, no final dos anos 80 outra dimensão conceitual na definição de alfabetização surge no Brasil.
Segundo Soares (2006, p.18), na necessidade de novas práticas de leitura e escrita no contexto social, surge então o “Letramento” definido como sendo “O resultado da ação de ensinar e de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquiri um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter se apropriado da escrita”. Tal conceito vai além de aprender codificar e decodificar a língua escrita, para a autora um indivíduo letrado passa a ser aquele que além de compreender tais códigos saiba envolver-se nas práticas sociais de escrita. 
Nesse sentido muitas mudanças centram-se na história da alfabetização, e novos desafios são lançados diariamente frente a essa questão, conhecermos seu processo ao longo dos anos torna-se relevante para que possamos perceber sua evolução e experiências até então. Portanto, a preocupação não é definirmos seu conceito, mas a partir dele construir estratégias que contemplem um aprendizado prazeroso, que instigue cada vez mais o gosto pela leitura e pela escrita, que vá além da interação professor aluno, que o aluno tenha habilidades para exercer as práticas de leitura e escrita a qualquer hora e a qualquer lugar. 

Encontros no hospital: a construção das práticas de leitura e escrita

As atividades para a construção da leitura e escrita no ambiente hospitalar se davam a partir de encontros semanalmente. Ao denominar esses espaços/tempos de aprendizagem como “encontros”, toma-se como justificativa a contribuição de Ortiz; Freitas (2005, p.68) quando salientam que, “Há, na classe hospitalar, uma proximidade maior entre professor e paciente, a troca de afetividade passa a ter relevância na cognição, por isso as relações assumem um caráter de encontro”. É nessa relação que foram sendo construídos os processos de aquisição do conhecimento do mundo da leitura e da escrita.
Ao mencionar tais encontros como “construção das práticas” de leitura e de escrita, destaca-se que, a cada encontro, estratégias de aprendizados eram utilizadas, a partir de um planejamento flexível, aberto às circunstâncias que o momento apresentava. Para cada aluno, dentro da sua aprendizagem já consolidada, atividades distintas eram organizadas, e usufruídas quando estas impulsionavam a motivação pelo aprender, caso contrário, as atividades propostas eram reelaboradas e/ou substituídas por outras. 
Nessas práticas de alfabetização, a metodologia utilizada partia do conhecimento prévio do aluno. Àqueles que ainda não conheciam o sistema alfabético, partiu-se do processo inicial de alfabetização. Para aqueles que já haviam frequentado a escola, partia-se da etapa que se encontravam buscando contribuir com o ensino daquilo em que apresentavam maiores dificuldades. Tanto para as crianças que já interagiam com o sistema alfabético, como àquelas que ainda não o conheciam, foram sendo realizados planejamentos a partir de atividades lúdicas, como utilização e confecção de jogos, exploração de diferentes portadores de texto, desde livros infantis, até aqueles portadores presentes na rotina hospitalar. Além disso, desenhos tomavam formas de fantoches que ganhavam vidas no cenário que a imaginação viajava. Dobraduras, pinturas, quebra-cabeças, cartões, recortes, colagens, contos, poesias, leituras em voz alta, silenciosa, individual e em conjunto, passeio nos corredores do hospital, tudo isso, fez parte destes encontros.
As atividades que envolveram a construção e o aprimoramento de leitura e escrita nos encontros foram desenvolvidas respeitando as hipóteses de aprendizagens, conforme Ferreiro; Teberosky (1985), que cada aluno-paciente se encontrava, atribuindo também as questões de letramento, tendo em vista o uso da leitura e da escrita nas práticas sociais, conforme mencionada anteriormente nas contribuições de Soares (2006).

Ludicidade e afetividade no processo de ensinar e aprender

Ao refletirmos sobre o ensino-aprendizagem da língua escrita, logo nos reportamos ao processo organizado, em um tempo e lugar específico, onde acontecerão mediações entre professores e alunos, para que a partir destas relações, se elaborem novos conhecimentos e se construam aprendizagens dando continuidade a tudo o que a criança, até então, já entende da leitura e escrita. 
Nesse sentido, a alfabetização aparece como uma construção significativa para o alfabetizando, como algo que ocorre pelo prazer de aprender. No entanto, sabemos que nem sempre o processo ocorre da maneira desejada, pois há muitos obstáculos ao longo caminho por onde passa o processo de alfabetizar. Nem sempre os alunos se envolvem e se motivam a aprender a leitura e escrita como deseja o educador, ou nem sempre o docente se compromete com esta importante tarefa de alfabetizar, de maneira que permaneça no aluno aquela vontade de ler e escrever que a crianças traz consigo. 
Muitas vezes, ocorre o processo contrário no decorrer da formalização do ensino-aprendizagem da língua escrita, pois a criança acaba perdendo todo o encantamento de aprender devido a forma como a leitura e escrita lhe é apresentada. Quanto a isso Antunes (2007, p.83) nos coloca que “o aprender nessa concepção começa a distanciar-se da esfera do desejo, da curiosidade, da fantasia e da dimensão simbólica, definindo uma concepção árida e empobrecida do que significa aprender e ensinar”. Essa nova percepção do aprender, por vezes, estabelece uma desmotivação e desinteresse pela aprendizagem da leitura e escrita nas crianças.
O que se refere aos docentes, Ferreiro (2001, p.69) contribui destacando que “não é fácil encontrarmos educadores e investigadores capazes de interpretar todas as sutilezas envolvidas nas produções escritas que precede qualquer tentativa de estabelecer uma correspondência entre letra e som”. Mais do que saber associar as letras ao som e reconhecer a escrita como uma representação simbólica da oralidade, as crianças buscam formular significados e entender de uma maneira contextualizada este objeto de apropriação no qual se torna a escrita para os alfabetizandos. 
Acreditamos que a alfabetização é um processo que requer envolvimento, doação, vontade e satisfação de ambas as partes, tanto professores como alunos, pois só assim será realizada de maneira prazerosa, sem se distanciar do mundo de fantasias, curiosidade e desejos em que se encontra a infância. Para tanto, é fundamental que esse processo respeite o mundo infantil e, mais que isso, é necessário que envolva as crianças de maneira que a aprendizagem não se torne maçante ou sem sentido a elas.
Ao refletirmos sobre o que fazer para que a aprendizagem da leitura e escrita aconteça aliada ao desejo espontâneo, à construção significativa e prazerosa, reportamo-nos a algo que, sem dúvida, rebusca o princípio da infância: a ludicidade. Como afirma Fortuna (2000, p.82) “Cada vez mais as pedagogias progressistas professam a tese de que é possível aprender brincado, ou, pelo menos, fazê-lo de forma prazerosa; o que frequentemente, culmina na ludicidade”. Assim, a partir de atividades lúdicas, estabelece-se um elo entre o prazer e o aprender, entre o ensinar e o buscar significado.
Também é importante destacar a relevância do lúdico para o desenvolvimento pleno da criança, o que ultrapassa a sua validade pela busca do prazer em aprender. Como aponta Negrine (2000, p.20) “através das atividades lúdicas a criança vai construindo seu vocabulário lingüístico e psicomotor. São nestas e, provavelmente, somente nestas atividades, que a criança pode ser espontânea e, consecutivamente, criativa”. Para tanto, a partir da crença de que a utilização e valorização de jogos e brincadeiras facilitam a aprendizagem, buscamos estabelecer o lúdico não apenas como uma mediação no processo de alfabetização, mas, mais que isso, como algo fundamental no decorrer da formação de hipóteses e construções criativas das crianças sobre a linguagem escrita.
A construção do conhecimento envolve inúmeros processos que são indissociáveis para que assim haja a aprendizagem. Nesse ato complexo do ensinar e aprender a ler e escrever requer também um olhar aos aspectos afetivos que compreende a formação humana.
Para Tassoni (2001), nos últimos anos diversos estudos voltaram-se a atenção para a formação do ser humano como o entrelaçar dos processos cognitivos e afetivos, voltando-se a novas atividades pedagógicas. Tassoni (2001, p.224), “(...) Nesse sentido começa a se evidenciar o aspecto afetivo do processo de ensino/aprendizagem e destaca sua relevância para o processo de construção do conhecimento, em conjunto com os aspectos cognitivos”.
Essa evidência passou a fazer parte de muitos questionamentos, pois o que muito tempo prevaleceu eram estudos referentes aos aspectos cognitivos do desenvolvimento humano. Contudo, nos últimos anos ampliou-se as discussões  e o interesse em compreender a importância da afetividade no processo de aquisição da aprendizagem.
Nesse sentido, muitos estudiosos como Jean Piaget (2001), Lev Semenovich Vygotsky (1996), cada um dentro de suas concepções, defendem a ideia de que a afetividade e a cognição são inseparáveis. Também se torna relevante mencionar as contribuições de Humberto Maturana (1998, p.15) o qual menciona que “ao nos declararmos seres racionais vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional”. Para o autor, a biologia do amor faz parte do devir histórico humano, sendo ele a emoção que funda o social, o respeito por si próprio e pelo o outro.
Contudo, muitos enfoques frente essa questão envolvem as atuais discussões educacionais, não prevalece aqui o intuito de aprofundá-los, mas de aproximar os estudos e a relevância desse processo à nossa compreensão. Tais contribuições já esclarecem a nova concepção do como se estabelecem os processos de aquisição do aprendizado. O processo de ensinar e aprender volta-se a questões que ultrapassam a mera transmissão das informações, pois para que haja realmente o aprendizado, a construção do conhecimento, o aluno precisa querer, precisa entender o porquê aquilo é importante para sua formação. Conforme Gadotti (2003, p.47) “A educação é necessária para a sobrevivência do ser humano. (...) Ele só aprende quando quer aprender, quando vê na aprendizagem algum sentido”. Frente a isso cabe a nós, educadores, estabelecermos relações de aceitação, de bem estar e credibilidade aos alunos para que estes sintam-se auto-confiantes e motivados. Respeitarmos as vivências, a realidade e as individualidades de cada um. O educador deve ser o mediador do conhecimento e do despertar o desejo e o sentido do aprender. 
Os espaços e tempos de aprendizagem para crianças ou adolescentes hospitalizados seguem regularidade e intesidade diferentes da escola comum e atendem, além das demandas intelectuais, às necessidades de pertencimento a uma comunidade afetiva e de inclusão sociointerativa. (CECCIM; FONSECA, 1999, p.36) 
É na interação com o ambiente letrado, oportunizado nos encontros e nas demais atividades voluntárias, e na interação com a comunidade hospitalar, a partir da atenção, carinho, respeito, diálogo, que o aprendizado acontece. Esse processo contínuo contribui na recuperação, e nas aspirações de sonhos presentes e futuros de cada criança hospitalizada.
   

Conclusão 

Em todos os encontros com as crianças hospitalizadas buscava-se priorizar o bem estar e a motivação pelo aprender, pelo viver. Tomam-se aqui as contribuições de Ortiz; Freitas (2003, p.10) “O que-fazer docente atenta para a singularidade do aluno, acenando para um processo de ensino permeado de afetividade e alegria de viver, fazendo do hospital um espaço de teoria em movimento permanente de construção-descontrução-reconstrução”.
Essa experiência foi recheada de momentos significativos, em que o ensinar e o aprender foram recíprocos na trajetória do professor e do aluno-paciente. Cada encontro foi uma conquista para ambos.
Encontros que tiveram seu espaço nas salas dos médicos, nos leitos das salas de transplante, na mesa dos guardas e nos bancos de espera do hospital. Espaço para os encontros nunca foi o problema, pois o carinho, a cumplicidade entre professor e aluno-paciente foi transformando os espaços mórbidos do hospital em ambiente de aprendizado, de alegria, de esperança, de envolvimento, de entusiasmo e de superação de muitos problemas físico-emocionais que prejudicavam ainda mais a recuperação destes pacientes. Dificuldades existiram, mas a vontade de ensinar e aprender aliados a ludicidade e a amorosidade foram fatores fundamentais para o aprendizado e o retorno desses alunos às classes escolares do Sistema Regular de Ensino, não mais como aquele aluno que estava em atraso com o conteúdo, mas como aquele aluno criativo, autônomo, considerado conforme o relato dos pais, como um dos melhores alunos da turma. 
Contudo, essa escrita além de apresentar a experiência desenvolvida na Hemato-Oncologia do Hospital Universitário de Santa Maria, tem o interesse em compartilhar esse trabalho e mostrar que o processo de ensinar e aprender pode acontecer em qualquer lugar, desde que haja interação, criatividade, amorosidade e comprometimento. 

REFERÊNCIAS

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